Creio que
Sônia era adolescente quando a conheci. Magrinha, quase franzina apresentou-se
a mim com um largo e belo sorriso, aquele dos
jovens que têm a mente repleta de sonhos.
Vaidosa,
gostava de maquiar os olhos e de clarear os cabelos, usando-os loiros, lisos e
compridos. Uma mocinha atraente. Tinha um namorado, do qual parecia se orgulhar. Depois, tive
notícias de que aquele namoro terminara. E outros namoros, mais tarde,
terminaram também.
Não são
poucas as pessoas que tentam, nesta vida, entabular uma relação afetiva
duradoura, sem o conseguir: iludem-se, por vezes, confundindo satisfação sexual
com afeto; em outros casos, deixam-se atrair por pessoas de menores valores
morais; podem entender que ter amor é receber carinho e atenção, simplesmente,
sem conhecerem a alegria de compreender a quem se ama...nem todos conseguem desenvolver uma boa capacidade de percepção e uma sensibilidade realista.
Por outro
lado, dificilmente o ser humano aprende a dar de si o que não recebeu, enquanto
sua personalidade se formava.
Certo dia, estava grávida e encontrei-me com Sônia que me cumprimentou com o mesmo
sorriso de quando a conheci, vários anos antes; ela me perguntou se eu passava bem.
Comentou que tinha muita vontade de ter um filho, também, mas tinha medo de que
o fígado a fizesse passar mal, pois sua digestão ficara complicada desde uma
hepatite que tivera.
Adiante,
soube que suas tentativas de estabilizar-se, afetiva e economicamente, não eram
bem sucedidas. E quando tinha notícias dela, vinha-me sempre à mente seu sorriso e uma forte intuição de que aquela moça não aprendera a distinguir
‘ilusão’ de ‘realidade’.
Recentemente,
soube que Sônia estava doente com um
câncer no pâncreas e no fígado... e me lembrei de seu medo de que este lhe
trouxesse problemas, caso engravidasse. Que eu saiba, ela não chegou a gerar
outra vida, mas o câncer alcançou-a exatamente pelo fígado.
Foram tempos
muito difíceis, para ela e para a irmã que a acolheu durante a doença. Cuidar
de males potencialmente letais, como o câncer, inevitavelmente impõe às
pessoas mais próximas uma readaptação na rotina de vida – e isto é tão difícil para o paciente, quanto para quem
o atende, embora sob diferentes ângulos, formas e por diferentes razões. É
comum que muitos familiares não se envolvam com o acompanhamento e a
administração das variáveis próprias às doenças graves. E assim foi com Sônia,
que só contou com a presença ativa de sua irmã.
Igualmente
comum é que a limitação iminente desta vida traga à tona um reviver (ainda que não expresso) das fraquezas de conduta que o doente apresentava antes, em geral
no desejo de compreensão dos possíveis
fatores causais de sua moléstia e situação de vida. Nem sempre, porém, há tempo ou condições para
se elaborar de modo construtivo e esperançoso, a compreensão daqueles fatores –
e, não raro, os fantasmas da culpa, da mágoa e da raiva vêm maltratar ainda mais às criaturas em
questão.
É um
conjunto de provas que pode redundar em singulares exemplos de evolução para o
ser humano – mas muito tempo é preciso para que a mesma evolução se processe.
A última
notícia que tive de Sônia referiu-se ao
seu falecimento, num domingo deste maio de 2013. Então, não mais a imaginei
sorrindo. Não precisara vê-la doente, para conhecer seu tipo de calvário, físico
e emocional.
O sentir espiritual de tudo aquilo era prerrogativa dela e de sua irmã, conforme suas respectivas capacidades de percepção.
Mas seu
sorriso nunca me transmitira, de fato, alegria, senão a busca insegura de uma
vida nem sempre bem definida.
O perfil característico das pessoas que são acometidas e
vencidas pelo câncer: a vivência de uma rejeição precoce (real ou não), que não
se consegue superar e que leva a pessoa a tentar suprir seu vazio interno numa
trajetória orientada pelo medo, o grande inimigo da racionalidade e, igualmente,
do amor.
Conheço este
filme, porque enfrentei o câncer também; por três vezes. Olhei bem de perto nos
olhos do monstro, mas tive o privilégio de conhecer o amor e a amizade
verdadeiros, convivendo com pessoas e situações que me sensibilizaram a
tentar, como até consegui, vencer a
ameaça objetiva e internalizada da rejeição, do medo, da mágoa e da raiva. Tive
o privilégio de encontrar e reconstruir minha trilha para uma vida mais saudável, até aqui.
Sinto,
portanto, uma compaixão muito intensa por aqueles que são atingidos por doenças
como o câncer e desejei, profundamente, aproximar-me de Sônia e levar-lhe o
carinho silencioso de que os doentes precisam tanto, mesmo quando não o
reconhecem, com as vibrações da fé e do alento. Não houve oportunidade para tanto.
Trago-lhe,
então, aqui, as minhas vibrações em prece e peço a Deus que transforme o
sorriso de Sônia na imagem de uma busca iluminada pelo Seu amor.
Mª Antonieta
de Castro Sá.