segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Saudades de conversar

No dia vinte e três de agosto, trás-anti-ontem, meu pai completaria cento e sete anos. Há vinte e três anos já não está entre nós e deixou muitos motivos de saudade a quem conviveu com ele: grande contador de casos sobre tudo e de 'causos' de sua cidade do interior, bom contador de piadas e dono de grande repertório (aqui e ali contava alguma que era 'suja'), claro comentarista dos melhores artigos de jornais, inteligente apreciador dos best-sellers literários e eventualmente de clássicos da literatura internacional, apreciador dos melhores autores de contos policiais de sua época (acompanhou toda a obra de Agatha Christie), admirador de poemas de amor, como também de poesias satíricas - dizia de cor uma porção desses todos e gostava de homenagear alguma jovem amiga que frequentasse nossa casa, dizendo-lhe trovas que com a moça combinasse...
Acompanhava o teatro nacional e várias vezes me levou a assistir o trabalho de autores e atores ou atrizes inesquecíveis, ainda que hoje os estilos teatrais sejam bem mais variados. Com ele conheci, assim: Ziembinsky, Procópio Ferreira interpretando 'Deus lhe pague', texto de crítica social que sempre teria atualidade, Sergio Cardoso, Paulo Autran - talvez o melhor ator brasileiro do século XX - Gianfrancesco Guarnieri, autor e ator privilegiado com sua simplicidade e profundidade raras, Claudio Correia e Castro no incomparável 'Galileu' de Bertold Brecht, Lima Duarte e Paulo Gracindo, ambos de grande maleabilidade interpretativa, como Juca de Oliveira, capaz de nos brindar com poemas de Garcia Lorca, Henrique VIII de Shakespeare e ainda com personagens novelescos...
Com ele conheci, igualmente, a eterna dama de nosso teatro: Cacilda Becker,  sua irmã Cleyde Yáconis,  Nathalia Timberg, Bibi Ferreira insistindo em fazer musicais e desperdiçando suas habilidades dramáticas, Fernanda Montenegro, Célia Helena, que morava em uma rua vizinha à de nossa casa e com quem ele se deliciava trocando idéias, quando juntos tomavam um taxi para o Centro da cidade...
Era exatamente assim: ele se deliciava se podia conversar com gente inteligente, de muita ou pouca instrução - só não aguentava a ignorância alimentada pela burrice - aí ficava muito bravo e era preferível estar longe dele quando ficava zangado, porque toda a sua verve, ternura e simpatia davam lugar a uma grande agressividade verbal. Felizmente, porém, isto não predominava naquele homem que viera sozinho do Vale do Parahiba, em 1924, para talvez estudar ou construir uma vida em São Paulo.
De lá trouxe apenas a instrução do ensino médio e sua flauta de cinco chaves, que aprendera a tocar com o compositor local Patápio Silva, embora sem ler música - porque tinha ouvido absoluto - e aqui sozinho procurou e encontrou tudo o mais que acima mencionei, além de ter apreciado muito, também, do que aqui chegava pelo cinema.
Por fim, casado com mamãe, pequena mulher de família 'oriundi' (de italianos), descobriu com o sogro e os tios por afinidade à música lírica, na obra de Verdi, Puccini, Bizet, Giordano e seu predileto  Carlos Gomes, o brasileiro que 'começou onde Verdi havia terminado', como este mesmo afirmara ao assistir 'Il Guarany'. E da música lírica alcançou ainda alguns compositores clássicos, como Chopin, Liszt, Strauss e Tchaikovsky.
Sobre quantos assuntos ele era capaz de conversar! E como gostava de fazê-lo!
Mas era ainda um bom ouvinte das questões que aos outros angustiavam, sobretudo aos mais jovens que por suas opiniões se interessassem. Muitas vezes, os amigos nossos (de seus filhos) vinham nos ver e se detinham a conversar com ele, que, ainda por cima, era 'muito' sãopaulino.
Em nossa história familiar ele deixou, sim, motivos para muita saudade - como deixou também suas lembranças difíceis, do temperamento ciumento e tão severo quanto alegre.
Mas, de todas, a maior saudade que sinto é a de poder conversar com meu pai.
De tudo que me transmitiu e me ensinou, nada assimilei melhor do que o gosto por uma boa prosa. 
E, hoje, as pessoas não têm mais tempo para conversar - sequer se visitam - no máximo vão fazer com os outros alguma refeição, quando mal param pra comer! A internet é o ponto de encontro principal entre criaturas do mundo todo e, aqui, não se pode usar mais do que uns poucos espaços para digitar umas poucas frases.
Por isso tenho meu próprio blog: pra tentar conversar com alguém, podendo completar meu raciocínio!
Mas são poucos os que têm tempo e paciência pra degustar minha prosa. E mesmo eu, tenho que respeitar o rítmo do mundo, se quiser trabalhar, preservar alguns amigos e não ficar presa em alguma sala escura, quando tudo se fecha e todos se retiram...
Maria Antonieta de Castro Sá.