segunda-feira, 16 de abril de 2012

CULTURAS, COSTUMES E SENTIMENTOS

No fim dos anos setenta, conheci o sertanista Orlando Villas-Bôas. O Parque Nacional do Xingu, agora em evidência por conta de um filme, recentemente lançado entre nós, já contava quase vinte anos e, ainda assim, não era muito conhecido. Mas dezenas de tribos indígenas já haviam sido descobertas e outras tantas vilas sido organizadas ao sul da Amazônia brasileira.
Trabalhando como psicóloga na Penitenciária Feminina da Capital (então no extinto Carandiru), eu procurava, entre outras coisas, favorecer contatos saudáveis entre a população aprisionada e nosso mundo externo.
Com esta perspectiva, pedi a Orlando que fizesse uma visita informal à penitenciária, trouxesse filmes do Parque do Xingu e conversasse com as detentas sobre a natureza da região e os índios ali nativos. Não era permitido que se juntassem detentos das unidades masculinas e femininas, para nenhum tipo de atividades, donde só pude pedir-lhe que fosse à penitenciária feminina, onde eu trabalhava.
Ele atendeu de pronto ao meu pedido, a Coordenadoria dos Estabelecimentos Penais autorizou e durante  toda uma tarde de domingo, Orlando Villas-Bôas permaneceu entre cerca de cento e vinte mulheres presas, projetando filmes e descrevendo os costumes mais característicos dos índios que viviam às margens do Xingu.
Aliás, 'margens' foram a primeira questão a surpreender nossa platéia: porque se trata de um rio onde, geralmente, as margens não são avistadas de um lado ao outro, tamanha é sua largura. Não fossem as vegetações, que aqui e ali aparecem, e ter-se-ia a clara impressão de se estar em alto mar - exatamente a experiência oposta à aquela de quem vive entre muralhas e, portanto, entre limites rigorosos.
A sobrevivência dos índios brasileiros não poderia ser mais simples, ou sua vida mais pobre: antes do contato com os brancos, eles não conheciam sequer o sal, nem o açucar. Suas habitações, as ocas, eram feitas de barro e folhas ou palhas da vegetação. Dormiam em esteiras ou em redes tecidas à mão, com matéria prima também vegetal. Viviam geralmente nus e, se cobriam o corpo, faziam-no para se enfeitar, em cerimônias festivas ou em atividades de guerra: já disputavam territórios e o poder entre eles. Parece que mal o ser humano se agrupa e já descobre motivos para competir, inclusive às custas da própria vida.
Mas aqueles índios, geralmente, mostravam-se tranquilos, alegres e riam com muita frequência.
Tinham uma religião relacionada aos fenômenos naturais, como o vento, o trovão, etc. Acreditavam em uma divindade e, entre eles, alguns com maior sensibilidade tinham papéis mágicos, como o pajé, ou feiticeiro da tribo, que detinha maior sabedoria e manipulava plantas com fins medicinais, por exemplo.
Entre seus costumes já havia leis, cujas infrações podiam ser punidas com a morte.
Cabia às mulheres a maior parte das tarefas ligadas à sobrevivência - os homens se ocupavam mais com a proteção da tribo e com a caça. Ao mudarem de uma vila para outra, por exemplo, eram as mulheres que literalmente carregavam quase tudo - desde as crianças, até os utensílios de cozinha, as esteiras, etc - e, quando elas pariam, eram eles que permaneciam em repouso, descansando!
Tudo isso, e mais ainda, foi descrito por Orlando às detentas de nossa penitenciária feminina. Elas experimentaram intensas surpresas, com o que assistiram e ouviram naquela tarde: descobriram perigos nos quais nunca antes haviam pensado e conheceram formas, para elas bem estranhas, de amor, de colaboração e de raiva também.
Comentaram que já haviam se rebelado e agredido por muito menos do que aquelas criaturas tão ingênuas, como também suportavam bem menos sacrifícios do que as mesmas. Costumes diferentes determinam sentimentos e reações também muito diferentes.
Ao se despedirem do extraordinário visitante, mostraram-se emocionadas e uma delas adiantou-se para apertar a mão de Orlando.  Disse-lhe então:  "- o senhor trouxe aqui, na cadeia, a liberdade mais real que eu já vi, uma liberdade sem mentiras."

E até hoje eu carrego a impressão de que, provavelmente, naquela tarde, proporcionamos melhores oportunidades de reflexão àquelas detentas, sobre seus sentimentos, do que pudéramos fazer por vários anos de trabalho junto a elas.

Antonieta de Castro Sá.