quinta-feira, 30 de maio de 2013

SÔNIA




Creio que Sônia era adolescente quando a conheci. Magrinha, quase franzina apresentou-se a mim com um largo e belo sorriso, aquele dos  jovens que têm a mente repleta de sonhos.
Vaidosa, gostava de maquiar os olhos e de clarear os cabelos, usando-os loiros, lisos e compridos. Uma mocinha atraente. Tinha um namorado, do qual parecia se orgulhar. Depois, tive notícias de que aquele namoro terminara. E outros namoros, mais tarde, terminaram também.
Não são poucas as pessoas que tentam, nesta vida, entabular uma relação afetiva duradoura, sem o conseguir: iludem-se, por vezes, confundindo satisfação sexual com afeto; em outros casos, deixam-se atrair por pessoas de menores valores morais; podem entender que ter amor é receber carinho e atenção, simplesmente, sem conhecerem a alegria de compreender a quem se ama...nem todos conseguem desenvolver uma boa capacidade de percepção e uma sensibilidade realista.
Por outro lado, dificilmente o ser humano aprende a dar de si o que não recebeu, enquanto sua personalidade se formava.
Certo dia, estava grávida e encontrei-me com Sônia que me cumprimentou com o mesmo sorriso de quando a conheci, vários anos antes; ela me perguntou se eu passava bem. Comentou que tinha muita vontade de ter um filho, também, mas tinha medo de que o fígado a fizesse passar mal, pois sua digestão ficara complicada desde uma hepatite que tivera.
Adiante, soube que suas tentativas de estabilizar-se, afetiva e economicamente, não eram bem sucedidas. E quando tinha notícias dela, vinha-me sempre à mente seu sorriso e uma forte intuição de que aquela moça não aprendera a distinguir ‘ilusão’ de ‘realidade’.
Recentemente, soube que Sônia estava doente  com um câncer no pâncreas e no fígado... e me lembrei de seu medo de que este lhe trouxesse problemas, caso engravidasse. Que eu saiba, ela não chegou a gerar outra vida, mas o câncer alcançou-a exatamente pelo fígado.
Foram tempos muito difíceis, para ela e para a irmã que a acolheu durante a doença. Cuidar de males potencialmente letais, como o câncer, inevitavelmente impõe às pessoas mais  próximas uma readaptação na rotina de vida – e isto é tão difícil para o paciente, quanto para quem o atende, embora sob diferentes ângulos, formas e por diferentes razões. É comum que muitos familiares não se envolvam com o acompanhamento e a administração das variáveis próprias às doenças graves. E assim foi com Sônia, que só contou com a presença ativa de sua irmã.
Igualmente comum é que a limitação iminente desta vida traga à tona um reviver (ainda que não expresso) das fraquezas de conduta que o doente apresentava antes, em geral no desejo de compreensão dos possíveis  fatores causais de sua moléstia e situação de vida.  Nem sempre, porém, há tempo ou condições para se elaborar de modo construtivo e esperançoso, a compreensão daqueles fatores – e, não raro, os fantasmas da culpa, da mágoa e da raiva  vêm maltratar ainda mais às criaturas em questão.
É um conjunto de provas que pode redundar em singulares exemplos de evolução para o ser humano – mas muito tempo é preciso para que a mesma evolução se processe.
A última notícia que tive de Sônia  referiu-se ao seu falecimento, num domingo deste maio de 2013. Então, não mais a imaginei sorrindo. Não precisara vê-la doente, para conhecer seu tipo de calvário, físico e emocional. 
O sentir espiritual de tudo aquilo era prerrogativa dela e de sua irmã, conforme suas respectivas  capacidades de percepção.
Mas seu sorriso nunca me transmitira, de fato, alegria, senão a busca insegura de uma vida nem sempre bem definida. 
O perfil característico das pessoas que são acometidas e vencidas pelo câncer: a vivência de uma rejeição precoce (real ou não), que não se consegue superar e que leva a pessoa a tentar suprir seu vazio interno numa trajetória orientada pelo medo, o grande inimigo da racionalidade e, igualmente, do amor.
Conheço este filme, porque enfrentei o câncer também; por três vezes. Olhei bem de perto nos olhos do monstro, mas tive o privilégio de conhecer o amor e a amizade verdadeiros, convivendo com pessoas e situações que me sensibilizaram a tentar, como até consegui,  vencer a ameaça objetiva e internalizada da rejeição, do medo, da mágoa e da raiva. Tive o privilégio de encontrar e reconstruir minha trilha para uma vida mais saudável, até aqui.
Sinto, portanto, uma compaixão muito intensa por aqueles que são atingidos por doenças como o câncer e desejei, profundamente, aproximar-me de Sônia e levar-lhe o carinho silencioso de que os doentes precisam tanto, mesmo quando não o reconhecem, com as vibrações da fé e do alento. Não houve oportunidade para tanto.
Trago-lhe, então, aqui, as minhas vibrações em prece e peço a Deus que transforme o sorriso de Sônia na imagem de uma busca iluminada pelo Seu amor.
Mª Antonieta de Castro Sá.

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